O novo relatório do Painel Intergovernamental de Pesquisadores sobre Mudanças Climáticas da ONU, o IPCC, lançado em março, conclui que a espécie humana vive seus dias mais sombrios e com chances cada vez menores de habitarmos este planeta pelos próximos séculos. Mudanças dramáticas no planeta com eventos climáticos cada vez mais extremos e frequentes vêm impactando os países e grupos mais vulneráveis.
Estudos demonstram importantes relações entre a falta de um planejamento urbano sustentável e o colapso da biodiversidade, a crise climática, futuras pandemias e uma explosão da desigualdade social. Segundo os dados do Banco Mundial, a pandemia da Covid-19 levou mais de 100 milhões de pessoas a cruzarem a linha da pobreza e 49 milhões da extrema pobreza. Em 2020, a Organização Pan-Americana de Saúde demonstrou que a pobreza nos países da América Latina retrocedeu a patamares de 15 anos atrás.
Aqui no país, 33 milhões de pessoas passando fome, ao passo que vivemos uma sindemia global de obesidade e de inatividade física. Somos 1,4 bilhão de inativos incapazes de nos mover míseros 30 minutos por dia. No Brasil, 84% dos nossos jovens entre 11 e 17 anos não fazem atividade ao menos 60 minutos por dia. Isso significa cinco milhões de mortes por ano como consequência de não usarmos a nossa “máquina” de acordo com a sua especificação de fábrica.
Dentre tantas crises, certamente há também uma de demarcação dos espaços em nossas cidades. E isso não tem relação apenas com o colapso da nossa biodiversidade e com a crise climática, mas também com a oferta de comida adequada e saudável e com a prática de atividade física, especialmente quando consideradas as camadas mais vulneráveis da população, em especial as mulheres pretas e pobres.
O planejamento e desenho de nossas cidades determinam aquilo que comemos. A oferta de alimentos in natura e minimamente processados muitas vezes se encontra distante dos das residências dos mais pobres. Bairros mais periféricos contam com menor concentração de feiras-livres ou sacolões municipais especializados na venda de alimentos frescos e saudáveis. São os que os especialistas chamam pântanos e desertos alimentares.
Estudos estimam que nos próximos anos os alimentos ultraprocessados serão ainda mais baratos que os alimentos in natura, no Brasil, o que poderá aumentar o consumo desses produtos. No Brasil, 57 mil pessoas, com idade entre 30 e 69 anos de idade morrem anualmente por causa do consumo de ultraprocessados. Este número de mortes foi equivalente a 10% de todas as mortes prematuras que ocorreram no ano de 2019.
Nossas cidades também são determinantes quanto às chances das parcelas mais vulneráveis da população de praticarem atividade física. Regiões mais pobres e periféricas possuem uma menor concentração de parques públicos e áreas verdes. Por sua vez, o crescimento das cidades para pontos cada vez mais distantes dos centros comerciais aumenta a dependência no uso excessivo de carros e de transporte público precário, dificultando o uso de modos ativos de transportes como a caminhada e a bicicleta. Especialistas já nos apontaram os caminhos. Precisamos redesenhar as nossas cidades de modo que se tornem mais compactas e descentralizadas, com boa conectividade das ruas, boa infraestrutura cicloviária, boa densidade comercial e residencial, cheias de parques e áreas verdes. Tais características sabidamente reduzem o uso excessivo de carros, responsáveis por 20% das emissões de gases de efeito estufa, promovem atividade física nos deslocamentos diários e no lazer, a socialização e um sentimento de pertencimento sobre a cidade, um sentimento comunitário, atualmente perdido. Parafraseando o famoso arquiteto urbanista dinamarquês Jan Gehl, precisamos de (re)criar “cidades para pessoas”.
Os caminhos para enfrentarmos todos estes desafios já estão postos. O último relatório do IPCC traz grande contribuição neste sentido. Investimentos em habitação para famílias de baixa renda, energia solar fotovoltaica e eólica associada ao armazenamento de baterias, sistemas com maior eficiência energética, veículos elétricos, transporte público inteligente e de qualidade, investimento em mobilidade ativa e compartilhada, redução de desperdício de comida, sistemas alimentares que permitam o maior acesso a comida de verdade, hortas urbanas e escolares, restauração de ecossistemas – parques e áreas verdes, uso mais sustentável do solo e descentralização das cidades. A oportunidade está criada com a proposta de uma reforma tributária saudável, sustentável e socialmente justa, que permita recursos para essa mudança estrutural e vital para a população.
Celebramos em 6 e 7 de abril os Dias Mundiais da Atividade Física e da Saúde. Mas será que temos o que comemorar?
Ricardo Brandão, Professor e pesquisador da Uerj, Coordenador do Laboratório de Vida Ativa – LaVA Uerj