No mês passado, o Supremo Tribunal Federal (STF) deu uma decisão liminar que foi péssima notícia para defensores da saúde coletiva e que favoreceu o interesse das indústrias de refrigerantes e bebidas adoçadas, produtos responsáveis pelo adoecimento de milhões de pessoas no Brasil e no mundo. O tema não é simples, envolve o tema da prevenção de doenças, impostos e benefício fiscal, e nós, da ACT Promoção da Saúde, viemos te ajudar a entender melhor o assunto.
No início de maio, o governo federal publicou um decreto zerando o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) de extratos e aromatizantes concentrados utilizados na fabricação de refrigerantes. Na prática, esse decreto acabaria com um benefício fiscal desfrutado pelas indústrias localizadas na Zona Franca de Manaus, chamado “crédito de IPI”: além de não pagar as indústrias da ZFM ainda têm direito a um crédito milionário, calculado com base na alíquota do IPI. Só que o partido Solidariedade entrou com uma ação direta de inconstitucionalidade no Supremo Tribunal Federal, e o Ministro Alexandre de Moraes concedeu liminar que suspende os efeitos do decreto.
A ACT Promoção da Saúde lamenta a decisão – e fez uma nota técnica bem completa, explicando por que a decisão do STF faz mal à saúde dos brasileiros e brasileiras. Você pode clicar aqui e baixar a nota em papel timbrado, ou confira o texto abaixo.
Nota pública da ACT Promoção da Saúde sobre decisão do STF em ação sobre benefícios fiscais para indústrias de bebidas adoçadas
Maio de 2022
Na ação direta de inconstitucionalidade movida pelo partido Solidariedade (ADI 7153), o Ministro Alexandre de Moraes concedeu liminar que suspende os efeitos do Decreto n.º 11.052, de 28 de abril de 2022, que zerou a alíquota do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) para a venda dos extratos concentrados utilizados na fabricação de bebidas adoçadas¹.
A ACT Promoção da Saúde lamenta a decisão, pois o decreto é a medida ideal para a redução do bilionário e distorcido incentivo fiscal concedido a empresas do setor que compram os extratos concentrados de empresas instaladas na Zona Franca de Manaus (ZFM), em benefício de poucas e grandes corporações e em detrimento dos interesses e dos cofres públicos e da saúde pública.
Por se tratar de zona de livre comércio, dentre outros incentivos fiscais ali existentes, não há incidência de IPI na venda dos extratos concentrados para empresas que fabricam, engarrafam e comercializam bebidas adoçadas.
Ocorre que, mesmo sem recolher o IPI, as empresas adquirentes dos produtos e que estão localizadas fora da ZFM podem aproveitar o crédito presumido desse imposto (como se este tivesse sido recolhido no momento da compra) e, assim, compensar com o que vier a ser devido a título de IPI nas próximas etapas da cadeia produtiva.
Em suma, não há recolhimento do IPI, mas empresas localizadas fora da região se beneficiam de incentivo fiscal com o aproveitamento do crédito presumido. Daí porque a importância do referido decreto, pois quanto menor a alíquota, menor a renúncia fiscal, já que menor será o aproveitamento fícto do crédito de IPI.
O Decreto n.º 11.052/2022, que zera a alíquota do IPI, contribuiria para aumentar a arrecadação atual ou até quase dobrar, segundo estimativa do Ministério da Economia².
Ademais, com base em estudos detalhados, a Receita Federal informa que a redução da alíquota não leva a perda de competitividade das empresas, porque elas não têm concorrentes que possam fornecer os insumos utilizados pelos fabricantes, e que, no longo prazo, também não há risco de esvaziamento da Zona Franca de Manaus.
Tais operações já levaram à renúncia fiscal de quase R$ 4 bilhões de reais anuais, conforme Análise da Tributação do Setor de Refrigerantes e Outras Bebidas Açucaradas, da Receita Federal e do então Ministério da Fazenda. Desde 2018, o governo federal tem editado decretos que reduziram a alíquota do IPI para estes produtos, que até então era de 20%, e, assim, minorado a renúncia fiscal.
O país, além de não ter uma tributação majorada para bebidas adoçadas, conforme é a recomendação da Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) e a Organização Mundial da Saúde (OMS), com o objetivo de dificultar o acesso para consumo de produto nocivo à saúde, concede excessivo incentivo fiscal para este setor econômico.
Trata-se, assim, de benefício fiscal que ocorre fora da ZFM, e que beneficia toda a cadeia produtiva, privando os cofres públicos de recursos e barateando o preço final de produtos cujo consumo deve ser evitado, conforme o Guia Alimentar para a População Brasileira (Ministério da Saúde/2014).
Reduzir o excessivo benefício fiscal advindo do aproveitamento do crédito de IPI nestas operações atende ao disposto no artigo 153, da Constituição Federal, que determina que a tributação por meio do IPI deve ser baseada no nível de essencialidade do produto, conforme o princípio da seletividade, pelo qual produtos nocivos à saúde devem ter tributação majorada, como cigarros e bebidas adoçadas.
Aproveitamento do crédito presumido do IPI por empresas de fora da ZFM
O mencionado aproveitamento do crédito de IPI é permitido pela Constituição Federal em todo o país. O diferencial na ZFM é que o imposto não é cobrado e, mesmo assim, há permissão para o aproveitamento do crédito presumido em favorecimento de empresas localizadas fora da ZFM³.
Contudo, pretender que esse benefício igualmente assegure altos níveis de creditamento do IPI, com consequente redução do imposto a ser pago por empresas que se situam nas diversas outras regiões do país e, assim, fora da ZFM, equivale a interpretar de modo demasiadamente alargado a garantia constitucional.
As reduções das desigualdades regionais e econômicas pelas mãos do direito tributário devem ter por escopo determinado a região do país que se pretende incentivar. A extensão de benesses tributárias a outras regiões, via mecanismos indiretos, como o crédito presumido, representa desvirtuamento do princípio da uniformidade geográfica, previsto no artigo 151, inciso I da Constituição.
Ademais, tal interpretação limitaria consideravelmente a autonomia do Poder Executivo em alterar as alíquotas do IPI, imposto de vocação extrafiscal, cujas alíquotas são determinadas à luz das políticas econômicas pretendidas pelo governo federal.
Nesse caso, inclusive, a redução da alíquota do IPI é medida adequada não apenas para o atendimento do princípio da seletividade, já que a partir da redução do crédito se assegurará níveis de tributação mais adequados para bens notoriamente nocivos à saúde, mas, também, para equilibrar a concorrência no setor, já que haveria redução da vantagem competitiva de empresas que se valem do crédito presumido como forma de reduzir preços e custos de produção.
Importante reforçar que as mudanças no IPI decorrentes do Decreto em comento não atingem a Zona Franca de Manaus diretamente, já que a redução do crédito respectivo impactará apenas as empresas localizadas fora da ZFM.
Recorde-se que a vantagem tributária assegurada pela Constituição se limita à ausência de incidência tributária nos limites regionais da Zona Franca e se estende às operações de saída da região.
Ademais, o subsídio regional deve estar adequado proporcionalmente aos benefícios gerados para a região amazônica, como conclui a Receita Federal na referida análise.
Somados os dados de todos os fabricantes de concentrados localizados em Manaus, o número de empregos diretos criados pelo setor é de apenas 798 (dados de 2016), e que o número de empregos indiretos também não é significativo, como se vê dos dados indicados na Análise da Receita. Além disso, de um faturamento de R$ 8,7 bilhões, as empresas gastaram apenas R$ 215 milhões com a compra de insumos da região amazônica, como açúcar e guaraná.
A Receita Federal informa, na mencionada Análise, que “os benefícios sociais gerados na região amazônica pela produção dos insumos são muito reduzidos, quando comparados com os montantes da renúncia fiscal, e que a redução nos valores dos incentivos fiscais traria impacto positivo significativo nas contas públicas, ao mesmo tempo em que não geraria prejuízos para o consumidor, nem perda de postos de trabalho, pois as grandes empresas do setor, que no Brasil são as maiores remetentes de lucros e dividendos para o exterior, tem todas as condições de absorver um aumento em sua carga tributária”. No período entre os anos de 2013 e 2017, este montante foi de 13,4 bilhões de dólares.
Tributação e saúde pública
Este debate também suscita outro ponto de interesse público. A existência de subsídios fiscais para a produção de bebidas adoçadas no país contribui para o barateamento do custo final do produto e para o maior acesso e consumo em detrimento da saúde pública, em sentido contrário ao que recomendam autoridades nacionais e internacionais.
O consumo desses produtos é fator de risco para obesidade, ganho de peso e para as doenças crônicas não transmissíveis (DCNTs), sendo as principais as doenças cardiovasculares e respiratórias crônicas, diabetes e câncer, responsáveis por mais de 70% das mortes no Brasil e no mundo.
A Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) e a Organização Mundial da Saúde (OMS) recomendam a tributação de bebidas açucaradas como uma das medidas de maior custo-benefício para a saúde pública, capaz de reverter o crescimento da obesidade e das doenças relacionadas a esta condição. A OMS recomenda uma tributação de pelo menos 20% sobre as bebidas açucaradas.
Cerca de 60 países e regiões já adotam a tributação de bebidas adoçadas como política pública, como Portugal, Reino Unido, França e México. No Brasil, mais de 15 associações médicas assinaram uma nota pública em apoio a maior tributação de bebidas adoçadas como política para reduzir a incidência e prevenir doenças, como a Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (SBEM), Sociedade Brasileira de Diabetes (SBD), Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), Conselho Federal de Nutrição, Sociedade Brasileira de Hipertensão (SBH), Sociedade Brasileira de Cirurgia Bariátrica e Metabólica (SBCBM).
Tributação de bebidas adoçadas: bom para a saúde e para a economia
É preciso destacar as externalidades negativas geradas por este setor econômico, visto que o consumo de bebidas adoçadas sobrecarrega o sistema de saúde com o tratamento das doenças relacionadas.
Estudo coordenado pelo IECS revela que o consumo de bebidas açucaradas onera os cofres públicos: o sistema de saúde brasileiro gasta quase R$ 3 bilhões por ano na atenção a pacientes com doenças provocadas pelo consumo dessas bebidas. Desse total, quase R$ 140 milhões são usados na atenção a pessoas com obesidade e sobrepeso, e R$ 2,86 bilhões com pacientes das demais doenças associadas (diabetes tipo 2, doenças cardíacas, cerebrovasculares, doenças renais, asma, doenças osteomusculares e câncer).
Estudo realizado pela FIPE revela que a tributação majorada sobre bebidas adoçadas pode gerar uma receita de tributo específico entre R$ 4,7 e 7 bilhões por ano, a depender da alíquota estipulada. Um simulador interativo de impactos da tributação mostra que, com uma alíquota de 20%, haverá acréscimo no PIB de R$ 2,43 bilhões, crescimento econômico, redução do consumo e geração de empregos.
Notas de rodapé:
1 – Bebidas adoçadas são aquelas industrializadas e ultraprocessadas que contêm adição de açúcar (ou outro adoçante calórico) e/ou edulcorante. Bebidas açucaradas apresentam apenas adição de açúcar ou outro adoçante calórico, como xarope de glicose. São exemplos: refrigerantes, energéticos, refrescos, néctares e chás prontos para beber adicionados de açúcar. Bebidas dietéticas, por sua vez, têm o açúcar substituído por edulcorante. Exemplos: refrigerantes e outras bebidas dietéticas, diet, light, zero ou que venham com a alegação sem açúcar na parte frontal do rótulo, mas que contenham algum edulcorante na lista de ingredientes.
2- Nota Técnica Cetad/COEST n.º 249, de 15 de dezembro de 2020.
3- Por meio do julgamento do Recurso Extraordinário nº 592.891/SP, o STF, apreciando o tema nº 322 de repercussão geral, fixou a tese de que há direito ao creditamento de IPI na entrada de insumos, matéria-prima e material de embalagem adquiridos junto à Zona Franca de Manaus sob o regime da isenção.