De olho na autorização da venda de dispositivos eletrônicos para fumar, a indústria do tabaco tem usado o falso argumento em vários países de que esses produtos promoveriam uma redução de danos, ajudando quem quer parar de fumar. Mas o discurso deturpa e acaba confundindo até mesmo profissionais de saúde sobre uma importante política de cuidado em saúde pública para transtornos por usos de substâncias.
Para a médica e mestre em psiquiatria Carolina Costa, entrevistada no Boletim ACT 194, o real desfecho desse esforço da indústria é atrair novos e jovens compradores, garantindo futuros usuários. “A indústria do tabaco deturpa essa premissa para estimular que as pessoas não mudem nunca. Ou ainda pior, para angariar novos consumidores pelo apelo visual (aparência colorida, semelhante a um pendrive) e sensorial (cheiro de fruta, sabor doce, etc.). Principalmente, jovens que nunca usaram o produto do século passado”, explica Carolina.
A psiquiatra afirma que a redução de danos “é uma política de cuidado e não de venda”, com o propósito de facilitar o vínculo com o tratamento e não excluir as pessoas que não conseguem ou não têm condições de mudar comportamentos de riscos e que, com isso, acumulam outros problemas relacionados.
“A redução de danos veio reforçar a abordagem centrada na pessoa, promovendo direitos humanos e considerando-se as interseccionalidades, já que mudança é um processo de aprendizado e é necessário investimento, principalmente para aqueles que apresentam piores desfechos de saúde como as minorias”, declara.
Recentemente, a Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia publicou uma nota reafirmando os muitos danos causados pelos vapes, produtos de tabaco aquecido e outros eletrônicos, diante da decisão do governo britânico de usar os produtos para combater o tabagismo.
O processo de discussão sobre a manutenção da proibição da venda dos eletrônicos no âmbito da Agência de Vigilância Sanitária (ANVISA), por exemplo, considerou as evidências sem conflito de interesse da presença de metais pesados e de substâncias cancerígenas no aerossol que, ao contrário do que parece, não é vapor, além da própria nicotina, que faz mal à saúde independente da forma de entrega.
Isso a indústria não conta, não é?
Essa estratégia das empresas do Big Tobacco não é novidade. A indústria já se valeu de dados distorcidos e omite os aspectos negativos do produto para defender os filtros, os sabores e outros químicos adicionados. Tudo isso é arquitetado para reagir às pesquisas que provam os danos do tabaco e, claro, manter os usuários dependentes e vender mais.
Danos para o usuário e para a sociedade
Outro aspecto levantado pela pesquisadora é que, ao se falar de redução de danos, se deve ter em vista não apenas minimizar as consequências para o próprio indivíduo usuário, mas também para aqueles que estão em volta. “Por exemplo, o tabaco e seus novos produtos expõem pessoas involuntariamente a substâncias cancerígenas quando polui o ambiente. Já o álcool afeta a sociedade com o aumento da violência a si e aos outros, como em acidentes de trânsito”.
Na entrevista, a psiquiatra Carolina Costa reforça que cada substância tem diferentes histórico e tradições que contextualizam seu uso na sociedade. No caso do álcool, o consumo é muito normalizado na Europa, por exemplo. “Com isso, há um largo espectro de problemas com o uso. Apesar de qualquer quantidade aumentar o risco de morbimortalidade, especialmente, a incidência de câncer, observamos que há pessoas que consomem sem colocar outros em risco e sem problemas relacionados (uso de baixo risco)”.
Ela lembra que políticas públicas como a redução de disponibilidade, a restrição de publicidade e o aumento de preços e impostos, dentre outras previstas no programa SAFER da OMS/OPAS, podem impulsionar a reduzir os riscos e os danos não apenas para a pessoa, mas para toda a sociedade.