Luz, Câmera e Cigarro

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No fascinante mundo do cinema, o cigarro transcende a mera ação de fumar, assumindo um papel multifacetado. Inicialmente associado ao glamour de Marilyn Monroe e à rebeldia de James Dean, tornou-se um ícone enraizado na cultura pop, marcando diversas gerações.

Apesar das leis regulatórias que limitam o consumo de tabaco, o cigarro persiste nas telas de cinema e TV. A crescente conscientização sobre os riscos à saúde, somada à perda de ícones como os cinco atores que interpretaram o cowboy Marlboro para doenças relacionadas ao tabagismo, serviu como um alerta à sociedade sobre seus malefícios. Mesmo assim, a indústria do cigarro não se intimidou e continuou promovendo seus produtos através de inserções em obras cinematográficas.

Na era “on demand”, com programas de TV, filmes e séries na palma da nossa mão, a indústria do cigarro encontrou uma maneira de atualizar sua estratégia. O cigarro agora é promovido não apenas em filmes, mas também em séries de TV, como os Simpsons, que está em sua 31ª temporada. Imagine assistir um filme por 30 anos? E uma personagem fumar durante 30 anos?

A adesão a essas produções gigantescas se refletem nas inúmeras nomeações para premiações da indústria audiovisual, como o Globo de Ouro, o Emmy e o Oscar.

David Harbour como Jim Hopper (Foto: Netflix/Reprodução)
David Harbour como Jim Hopper (Foto: Netflix/Reprodução)

Esses resultados tornam-se evidentes na Netflix, que lidera o mercado brasileiro de streaming desde seu lançamento em 2011 e atualmente detém 30% do mercado brasileiro, que  vem exercendo um papel importante na influência desta geração, tendo em sua grade sucessos como “Stranger Things”, que se destacou como a série mais assistida em 2022. Este fenômeno estabeleceu recordes impressionantes, alcançando 7,2 bilhões de minutos de audiência nos Estados Unidos em uma semana, número que rapidamente aumentou para surpreendentes 12,3 bilhões de minutos com o lançamento da 2ª parte da 4ª temporada, além de conquistar 12 prêmios Emmy. É interessante observar que, ao longo das quatro temporadas, a série destaca o personagem Jim Hopper, um fumante inveterado, que perpetua a presença do cigarro ao longo da narrativa.

a andi não tira o vape da boca caraApesar do anúncio por parte da Netflix de sua intenção de banir a representação do cigarro em produções destinadas ao público mais jovem, observamos uma aparente “atualização” na representação do tabaco em suas produções, como evidenciado no reboot da série mexicana “Rebelde”. Esta atualização, que alcançou o top 10 global da Netflix, introduz uma nova personagem, Andrea Agosti (Andi), figura carismática e descolada que carrega seu pod em um colar no pescoço, utilizando-o indiscriminadamente nos corredores de seu colégio.

A prática não é exclusiva da líder de mercado. Em “Euphoria”, da HBO Max, o uso de cigarros eletrônicos é retratado entre os personagens adolescentes. Da mesma forma, em produções do Star Plus, como “The Bear”, em que o cigarro tem um sinônimo de alívio após um dia estressante de trabalho.

De acordo com levantamento da Truth Initiative, entre os 15 programas mais populares entre jovens de 15 a 24 anos em 2021, mais da metade apresentavam alguma representação de tabaco, seja ele eletrônico ou tradicional, o que significa que cerca de 25 milhões de jovens ao redor do mundo estão sendo expostos ao imaginário do tabaco através de suas formas glamourizadas na mídia de entretenimento e como resultado, o comportamento dos jovens está sendo alterado, com mostra estudo da FDA (equivalente a Anvisa no EUA), em que 2,8 milhões de jovens norte-americanos entre 11 e 18 anos usam algum produto de tabaco atualmente, e dentre esses, 2,1 milhões, cigarro eletrônico.

. .O aguardado anúncio dos indicados ao Oscar trouxe à tona uma manobra da indústria do cigarro que vem sendo monitorada por muito tempo: o tabagismo como elemento recorrente nas narrativas cinematográficas. Dentre os dez indicados à categoria de Melhor Filme, apenas um escapou das representações de tabaco em sua produção – o filme “Barbie”. Filmes como “Oppenheimer”, o francês “Anatomia de uma queda” ou “Zona de interesse” apresentam uma presença significativa do cigarro em cena. O físico e idealizador da bomba atômica transita entre o cigarro e o cachimbo ao longo de toda a história; o francês conta com um close-up do cigarro queimando no cinzeiro, como quem mostra o tempo passar; por último, em “Zona de interesse”, vemos o protagonista encontrando sua paz após um dia de trabalho, quando está segurando seu charuto. 

De acordo com a OMS, a publicidade transfronteiriça de produtos de tabaco é uma grave ameaça à saúde pública, especialmente dos jovens. Essa prática, que consiste na promoção, publicidade, patrocínio ou qualquer forma de comunicação comercial de produtos de tabaco realizada por uma entidade ou pessoa em um país e direcionada a audiências em outros países, contraria as recomendações da OMS e estudos do The National Cancer Institute.

Estudos comprovam que a presença de produtos de tabaco em filmes e séries aumenta o risco de jovens iniciarem ou retornarem ao tabagismo. Essa influência é preocupante, pois os jovens são mais suscetíveis à publicidade e ainda não desenvolveram a capacidade crítica para resistir a ela.

A publicidade transfronteiriça, que dribla leis antitabaco em países com regulamentações mais rígidas, como o Brasil, enfraquece as políticas públicas de controle do tabaco. A indústria do tabaco utiliza essa estratégia para repor consumidores, já que milhões de fumantes morrem a cada ano.

Em resposta a essa crescente influência, durante a 10ª sessão da Conferência das Partes (COP10) da Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco da Organização Mundial da Saúde foram adotadas diretrizes para lidar com a publicidade transfronteiriça de tabaco e sua representação na mídia de entretenimento. As plataformas de mídia digital, como redes sociais e jogos, também se tornaram campos de batalha na luta contra o tabagismo. É fundamental que as restrições à publicidade de produtos de tabaco se estendam a todos os tipos de mídia digital, incluindo aquelas que recebem financiamento da indústria do tabaco ou promovem seus interesses.

Recomendações para a aplicação de medidas abrangentes, como a retirada de incentivos fiscais para filmes que violam as leis nacionais, visam desencorajar práticas prejudiciais à saúde. A imposição de penalidades eficazes e dissuasivas para garantir a proibição da propaganda transfronteiriça é essencial para proteger a saúde pública. Este é um momento decisivo na luta contra o tabagismo. As diretrizes da COP10 refletem um compromisso firme em avançar em direção a um futuro livre dos malefícios do tabaco.

Kauã Assunção

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