Bruna Hassan e Mariana Claudino, da equipe da ACT, participaram do Banquetaço no último dia 27 e escreveram textos sobre a experiência para o nosso blog:
Uma aula de vida
Por Mariana Claudino*
No último dia 27 de fevereiro, a ACT foi uma das muitas organizações que participou ativamente do Banquetaço. Aqui no Rio, alguns integrantes da nossa equipe colaboraram desde o fim de janeiro, com reuniões semanais no IFCS, na UFRJ. Tive a honra e o privilégio de fazer parte desse grupo, que se articulou e se organizou com o propósito de servir mais de 1.500 refeições no Largo da Carioca, para o povo que estava por lá. Muitos integrantes desse grupo nunca haviam se visto antes, mas se uniram por uma causa linda: protestar pacificamente – com um grande banquete – contra a extinção do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, o CONSEA, no primeiro dia útil deste ano, pelo Governo Federal.
Faz quase um mês que o Banquetaço aconteceu e todo o processo de construção desse ato ainda não saiu da minha cabeça. Desde a primeira reunião do núcleo Banquetaço Rio de Janeiro – do qual fiz e faço parte ativamente, representando a ACT e a Aliança pela Alimentação Adequada e Saudável – percebi o quanto era importante todo aquele movimento que estávamos ajudando a realizar. Em todo o Brasil, foram mais de 20 mil refeições servidas em 40 cidades e municípios.
Ali, no Largo da Carioca, a fila se formou antes mesmo das 10h da manhã. Uma das primeiras pessoas a chegar foi o João, que está desempregado há dois anos. Me perguntou com muita educação se o banquete (ele disse assim, “banquete”) iria demorar muito, porque ele estava com fome, a barriga estava roncando e não comia comida (só lanchava) desde segunda-feira, dois dias antes. O número de pessoas ia aumentando, aumentando… Um início de discussão se deu entre os primeiros da fila, mas fomos lá e pedimos um pouquinho de paciência, que já iríamos servir, que estávamos preparando tudo com carinho e organização. Eles nos ouviram. Nosso grupo foi se posicionando em frente às panelas e travessas e começamos o banquete.
Uau… que experiência. Quantos rostos, quantas pessoas, quantas histórias diferentes por ali passaram… Enquanto eu servia o arroz e a vagem, preparados na cozinha da Ação da Cidadania (certeza de que você ficou feliz, Betinho!), fiquei olhando para cada um e cada uma que passava por ali na minha frente, esperando que fossem servidos. Ouvi frases como “Deus te abençoe, minha filha”, “Tá bonito esse arroz!”, “Quero essa vagem, parece muito boa!”, entre muitas outras. O sol era muito forte naquela quarta-feira de verão pré-carnaval e não dava trégua, mas em vez de calor, eu fiquei foi arrepiada em diversos momentos. As lágrimas caíam enquanto as pessoas passavam – e eu disfarçava, dando piscadinhas e sacudindo um pouco o rosto. Não queria que elas me vissem chorando. O que eu queria mesmo era que aquele arroz nunca acabasse, pra eu poder oferecer sempre a cada uma delas. Que intenso foi aquilo…
Duas situações me chamaram muito a atenção: uma delas foi de um senhor, que tinha idade pra ser meu avô e era um dos primeiros da fila. Era tanta gente sendo servida – e a fila tão grande – que era preciso ser rápido. Não queríamos deixar as pessoas esperando ainda mais. Foi assim que eu acabei me antecipando e já ia colocando o arroz no prato desse senhor, quando ouvi: “Opa! Não, menina, não quero arroz não. Já tem macarrão, não preciso de arroz e macarrão. Agora quero mesmo é um feijãozinho, tem aí?”. Foi aí que caiu a minha primeira ficha: Mariana, cada um tem sua preferência alimentar! E não é porque aquele senhor estava com fome, que aceitaria tudo o que serviríamos. Ele não queria arroz com macarrão – e não precisa mesmo comer arroz com macarrão! Estava certíssimo, ele.
A segunda história foi a de um rapaz, morador de rua, que devia ter a minha idade e estava ao lado de uma moça. Quando viu as panelas e sentiu o cheiro das comidas, ele falou para ela, com brilho nos olhos: “Olha, fulana, é comida caseira mesmo! Tem o cheiro da comida que a minha avó fazia”. Me olhou bem no fundo dos olhos e disse: “Moça, eu tenho tido dias muito tristes, mas esse dia de hoje está sendo muito feliz. Obrigado, viu?”
Eu fiquei paralisada naquela hora. Troquei um sorriso enorme e cúmplice e emocionado com ele (minha vontade era de largar as panelas e ir abraçá-lo) e logo que ele saiu as lágrimas inundaram os meus olhos.
Obrigada, Banquetaço, pela aula que eu tive ali naquele dia, em apenas quatro horas. Foi um pós-doutorado de vida.
*Mariana Claudino é nutricionista e jornalista da ACT
“Gente é pra brilhar, não pra morrer de fome”
Por Bruna Hassan*
Só hoje eu consegui repensar e tentar me expressar sobre o que foi o Banquetaço. Eu ainda estou emocionada. É um misto de sentimentos. Foi lindo demais e correu o país todo. Cheguei em casa exausta, tomei meu banho, deitei, vi muitas fotos, matérias e vídeos, e confesso que chorei. Chorei até cair no sono e não perceber mais nada. Chorei um bocado. Chorei o que não tive coragem de chorar na frente daquelas pessoas. Porque eu não estava ali praquilo. Eu não fui para um protesto e para um banquete praquilo! Fui oferecer àquelas pessoas a minha gentileza, meu sorriso e a explicação do porque a gente tava ali. Mas uma coisa é a gente dizer que vai voltar para o mapa da fome. A outra é olhar para fome. Conversar com a fome.
O que o governo fez foi simplesmente acabar com a possibilidade de diálogo com a fome. De pensar como resolver esse problema. Quando o Bolsonaro retira o CONSEA no primeiro dia de mandato, é isso que ele faz. Com isso, o que ele diz é que não dialoga com as pessoas que falam sobre a fome. Que defendem o fim da fome.
É claro que o CONSEA está muito para além disso. O CONSEA também defendia que a
gente comesse comida de verdade, não qualquer coisa que as pessoas chamam de
comida. Defendia que a gente reduzisse nosso consumo de comida com veneno, com
a política de redução dos agrotóxicos. Defendia a valorização das pessoas que
realmente são responsáveis por colocar nossa comida no prato. Os agricultores
familiares. Esses sim é que produzem a maior parte da comida que a gente come.
Não é do agronegócio. A gente não se abastece com soja.
O CONSEA conseguiu garantir
que 1/3 da comida da escola viesse desses agricultores e possibilitou assim que
as crianças comessem uma comida de melhor qualidade. Foi com o diálogo do
CONSEA que de tornou viável a garantia de água via cisternas pra população do
semiárido, e foi até premiado internacionalmente por isso. Até para a gente ter
rótulos mais claros para essa comida de pacote o CONSEA defendeu. Defendeu que
mantivessem o T de transgênicos no rótulo e uma proposta de rótulos frontais dizendo se tem muito açúcar e outros
nutrientes, igual o Chile fez.
No Rio, ficamos no Largo da Carioca. Ali, é como se
todos os moradores de rua e a margem toda que circula pelas ruas do centro, é
como se todos tivessem se levantado praquele encontro. Chegou gente até depois
pedindo comida sabendo do encontro mais cedo. Tinha de tudo. Camelôs que iam
passar o dia ali e garantindo o almoço pra segurar a onda, um monte de
imigrantes de tudo quanto é lugar (me lembro de um peruano vestido com roupas
de índio e microfone que, horas depois, estava tocando uma gaita ao microfone
naquele mesmo largo). Meninas trans e travestis (tinha uma mega animada
escolhendo a banana prata, porque era a única que gostava), meninas e meninos
de rua, senhoras idosas com sacolas para levar mais comida, uma menina com um
carrinho de bebê, um senhor desses que vendem flores a 1 real com os braços e
mãos cheios de flores e comida (esse foi um dos que virei pra trás pra tentar
não chorar)
Tinham pessoas de todo jeito. Algumas muito alegres com aquilo, outras meio que estranhando, mas pegando comida, outras agradecidas . Participaram ativistas, nutricionistas, chefs, militantes, agricultores, pesquisadores e professores, ou seja, gente de tudo quanto era jeito. Foi intenso, bonito, foi surreal, e o melhor de tudo, não teve confusão, nem estresse.
O encontro foi também renovador. De alimentar as esperanças de um monte de gente pra ter de volta isso tudo que tava aí. Deu um trabalhão pra muita gente. Mil trocas de WhatsApp. E reuniões. E decisões conjuntas. E entender e respeitar o ritmo e desejo de cada pessoa e organização. E pedir dinheiro daqui e dali. Produzir e servir mais de mil refeições com mais de 100 pessoas organizando. E isso só no Rio. Ufa! E compensou. Muito! E foi muito aprendizado e possibilidade de juntar um monte de gente que tava meio que perdida e desarticulada, e de conhecer uma galera atuante com uma experiência incrível pra doar. Além de ouvir de um monte de gente a vontade que tinham de participar de outras manifestações como essa, de se engajar e querer ajudar. Aprendi muito e vou levar isso pra vida. A gente precisa se juntar mais vezes. Já dizia o Caetano que “gente é pra brilhar, não pra morrer de fome”.
*Bruna Hassan é nutricionista e pesquisadora da ACT