Desvendando as entrelinhas do contrabando de cigarros

Texto de autoria de:

  • Tânia Cavalcante – Secretária Executiva da Comissão Nacional para Implementação da Convenção-Quadro da OMS para Controle do Tabaco/INCA/Ministério da Saúde
  • Ana Cristina Pinho – Diretora Geral do Instituto Nacional do Câncer 
  • André Szklo –  Divisão de Pesquisa Populacional do Instituto Nacional de Câncer
  • Roberto Iglesias – Economista, consultor da ACT Promoção da Saúde

 

Com alguma frequência, pesquisas que monitoram as tendências de consumo de cigarros ilegais e apontam para sua redução no país são atacadas por grupos como o Instituto Brasileiro de Ética Concorrencial (ETCO) e o Fórum Nacional de Combate à Pirataria e a Ilegalidade (FNCP), que têm entre seus associados empresas fabricantes de produtos de tabaco. Um exemplo é o artigo publicado pelo presidente do FNCP, no final do ano passado.

Não é a primeira vez que porta-vozes de fabricantes de cigarros alegam o crescimento do contrabando desse produto para pressionar o governo brasileiro a nivelar seus impostos aos praticados no Paraguai, com taxas menores. Essa proposta é defendida como um “santo remédio” para enfrentar o contrabando advindo desse país.

O Instituto Nacional de Câncer (INCA), órgão do Ministério da Saúde que articula a Política Nacional de Controle do Tabaco, nunca negou a existência do mercado ilegal de cigarros. Muito pelo contrário, tem defendido a implementação do Protocolo para a Eliminação do Comércio Ilícito de Tabaco no Brasil e recomendado o mesmo para os países vizinhos. Também vem empenhando esforços para monitorar tendências do mercado do tabaco a partir de dados oficiais, não somente da pesquisa Vigitel, do Ministério da Saúde, como erroneamente assinalam esses grupos defensores da indústria do tabaco, mas também aqueles oriundos das Pesquisas Nacionais de Saúde (PNS) conduzidas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e pelo Ministério da Economia. 

As estimativas do INCA ganharam ainda mais consistência com a validação dos critérios empregados para estimar o mercado ilegal publicada recentemente na revista Tobacco Control e também com os resultados da Pesquisa Nacional de Saúde 2019, do IBGE. Esse estudo mostra que a prevalência do consumo de cigarros ilegais entre fumantes remanescentes foi de 34,7%; coerente, portanto, com os dados anteriormente apresentados pelo INCA em estudos que apontam tendência de queda no consumo de cigarros ilegais desde 2016. São dados bem distantes daqueles superestimados apresentados pelo ETCO em 2019 (57,0%)

O mínimo que se esperava, frente a tamanha incongruência, é que a metodologia da pesquisa do Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística (IBOPE), utilizada pelo ETCO, fosse disponibilizada para considerações de especialistas e das instituições de pesquisa que monitoram o mercado ilegal de cigarros no Brasil.

A quem serve o discurso de que o consumo do mercado ilegal cresce de forma alarmante no Brasil e que a solução para isso é baixar impostos sobre cigarros? Obviamente, para as fabricantes de cigarros que, de uma tacada só, poderão reduzir os impostos que pagam e neutralizar o efeito do aumento de preços e tributos sobre cigarros na redução do tabagismo. Em recente estudo publicado nos Cadernos de Saúde Pública, Szklo e Iglesias dissecam essa estratégia e a disparidade entre as estimativas de tamanho e tendências do mercado ilegal realizadas pelo ETCO e aquelas realizadas com dados oficiais e promovidas pelo INCA. 

Uma das medidas mais efetivas para o sucesso da Política Nacional de Controle do Tabaco é exatamente o aumento dos impostos e preços dos cigarros. A Receita Federal, que trabalha junto com o INCA na Comissão Nacional para a Implementação da Convenção-Quadro da OMS para Controle do Tabaco (Conicq), adotou, em 2011, um aumento substantivo do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) somado a uma política de preços mínimos para cigarros. O resultado gerou visível aceleração na redução da prevalência de fumantes, indicador que engloba consumidores de cigarros legais e ilegais. Com isso, a prevalência de fumantes medida pelas PNS diminuiu de 18,2%, em 2008, para 12,6%, em 2019, e observa-se significativa redução nas taxas de mortalidade por câncer de pulmão, enfisema e doenças cardiovasculares.

O INCA também participou do Grupo de Trabalho instituído pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública, em 2019, para discutir a relação entre impostos e contrabando de cigarros. O Grupo concluiu que a redução de impostos não seria uma resposta acertada para combater o contrabando. Além do mais, direcionou os esforços para a implementação do Protocolo da Convenção-Quadro para Eliminar o Mercado Ilegal de Produtos de Tabaco.

O Grupo considerou estudos do Banco Mundial que mostram que o mercado ilegal de produtos de tabaco é relativamente elevado em países europeus, com baixos impostos e preços de cigarros, e relativamente menor nos países com impostos mais elevados. A situação também é observada na Argentina, país vizinho do Brasil e do Paraguai, onde os preços são bem maiores e o volume de consumo de cigarro contrabandeado é bem menor. A partir desses estudos, o Banco Mundial concluiu que o principal determinante do mercado ilegal de produtos de tabaco não é a diferença de tributação aplicada entre países, e sim o domínio dele por facções do crime organizado, atraídas pela lucratividade e impunidade decorrente das penas brandas aplicadas a esse ilícito.

Ao superestimar o consumo de cigarros ilegais e afirmar que existe uma forte tendência de crescimento, esses grupos também desqualificam o Programa Vigia, do Ministério da Justiça, cujos resultados mostraram um significativo aumento na apreensão de drogas, cigarros e armas no Brasil e os prejuízos econômicos sem precedentes para as facções criminosas que operam esses ilícitos. Também desconsideram as ações de controle e repressão da Secretaria da Receita Federal e seus dados que registram um crescimento na produção de cigarros legais desde 2016, o que não bate com a lógica econômica do alarmante aumento do consumo de cigarros ilegais, bradado por eles. Seus dados fora da realidade são desconstruído até mesmo por recentes declarações de executivos de grandes fabricantes, como mostra uma matéria do Valor Econômico sobre crescimento do mercado de seus cigarros no Brasil em 2020 em decorrência da intensificação do controle do contrabando advindo do Paraguai.

O Paraguai é um dos 182 Estados Parte da Convenção-Quadro para Controle do Tabaco e o seu atual poder executivo tem buscado o apoio do Brasil na implementação desse tratado de saúde, que inclui política de preços e impostos sobre cigarros e um Protocolo para Eliminar o Mercado Ilícito de Cigarros. As conversas com o Paraguai são descartadas por esses grupos ligados à indústria do tabaco. Também é desconsiderado o termo de cooperação assinado em 2019 pelos Ministros da Saúde e da Economia de ambos os países. Ainda esqueceram do esforço do Poder Executivo do Paraguai de ajustar sua política tributária sobre cigarros e de ratificar o Protocolo. 

Enquanto as fabricantes de cigarros lucram bilhões de dólares, o mercado do tabaco anualmente mata 157 mil brasileiros e gera um custo de R$ 57 bilhões frente a uma arrecadação de impostos de menos de R$ 13 bilhões ao ano. Diante de tamanha dívida, como baixar impostos desses produtos?

Todo esse cenário aponta que a melhor resposta para enfrentar o contrabando de cigarros passa ao largo da proposta do ETCO ou FNCP. A Reforma Tributária em curso no Brasil oferece uma oportunidade ímpar para corrigir um desequilíbrio crônico entre o que o Estado brasileiro gasta com o tabagismo e o que arrecada com os tributos sobre tais produtos. Esperamos que os parlamentares envolvidos na Reforma Tributária não se deixem influenciar pelo mito de que o aumento de impostos sobre cigarros e produtos similares aumenta o contrabando. Também almejamos que seja instituído um Imposto Seletivo sobre produtos de tabaco que tenha característica extrafiscal para desestimular o consumo e que parte da arrecadação seja vinculada ao financiamento da Política Nacional de Controle do Tabaco, principalmente do seu Protocolo para Eliminar o Mercado Ilícito de Produtos de Tabaco. 

Por fim, em resposta à irônica e preconceituosa citação no artigo da FNCP, “o pior cego é o que não quer ver”, deixamos uma mensagem de Ghandi, “desconfiança é a melhor parte do conhecimento”, e o nosso entendimento de que a fumaça desse discurso ilusionista sobre contrabando de cigarros já se dissipa no Brasil. 

 

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