No final do ano passado, a Receita Federal divulgou uma nota de imprensa que analisa a tributação brasileira sobre o setor de bebidas adoçadas. A nota é resultado das investigações da Equipe Especial e da Coordenação de Fiscalização da Receita (Cofis) e deixa cada vez mais claro que é urgente pôr fim às irregularidades do setor, fruto das distorções na Zona Franca de Manaus. Além dos conhecidos benefícios fiscais bilionários que a Receita tenta corrigir há décadas, a nota também apontou uma situação de superfaturamento nos valores dos concentrados e outros problemas
O setor analisado engloba os 20 fornecedores de concentrados da ZFM e os engarrafadores de todo o país que adquirem esses insumos. A situação da distorção parece confusa – e é mesmo – mas se dá basicamente da seguinte forma: as mercadorias compradas com os fornecedores recebem um crédito de 20% do IPI do preço total pago. A regra de fornecer créditos ao comprador seguinte da cadeia produtiva é um princípio constitucional (Art. 155 § 2º) e visa evitar a acumulação do IPI, de tal forma que os compradores intermediários e final não paguem um valor acumulado sobre um produto que já foi tributado anteriormente. Mas, na ZFM, os concentrados têm isenção de IPI e o produto já chega ao engarrafador sem esse imposto. Mesmo assim, é dado um crédito na nota sobre um produto que não foi tributado, visando evitar uma cumulatividade que, nessa situação, não ocorreu.
Com o acúmulo dos benefícios fiscais da ZFM, a Receita Federal deixa de arrecadar R$ 2 bilhões por ano só com os créditos do IPI, chegando a ter uma alíquota negativa de 4%. Isso quer dizer que, para cada 100 milhões de reais em venda de bebidas, essas empresas acumulam 4 milhões de reais em créditos, que podem ser usados até para tributar menos as bebidas alcoólicas, segundo afirma a nota. E os benefícios não param por aí. As alíquotas reduzidas de IRPJ, PIS/COFINS, ICMS e Imposto de Importação somam uma renúncia de quase R$ 4 bilhões ao ano. Segundo a Receita, a renúncia fiscal é muito alta porque algumas empresas praticam graves infrações, que incluem o superfaturamento nos preços dos concentrados, a declaração de que as marcas estrangeiras são cedidas gratuitamente, e o pagamento de propaganda e publicidade de refrigerantes com dinheiro dos cofres públicos.
O superfaturamento é usado para aumentar os créditos das engarrafadoras. O crédito é calculado a partir de um percentual fixo sobre o valor do bem adquirido e o preço do concentrado é aumentado absurdamente para elevar o crédito. Uma estratégia usada para justificar os altos preços dos concentrados é incluir o custo com a publicidade de bebidas: o engarrafador compra o concentrado com o preço embutido da publicidade e o fornecedor devolve parte desse valor em forma de créditos. A Receita informa que o resultado disso é que o contribuinte brasileiro é quem vem pagando mais de um terço dos gastos na propaganda e publicidade deste setor há anos.
Outra irregularidade diz respeito ao uso indevido de desconto do IRPJ. Não é permitido desconto do IRPJ correspondente ao lucro gerado por receitas com royalties, situação que tem sido violada por fornecedores de Manaus de marcas estrangeiras. Essas empresas declaram que as marcas são cedidas de graça. Estamos falando das mais valiosas marcas de bebidas do mundo. Na verdade, ninguém sai perdendo. Os fornecedores embutem no preço do concentrado os valores dos royalties e o direito de uso da marca estrangeira é vendido assim. Sobre isso, a Receita é categórica ao afirmar que “convalidar esse planejamento tributário abusivo significaria admitir que o Estado brasileiro subvenciona royalties decorrentes da exploração de marcas comerciais de refrigerantes cuja titularidade final está noutro país, o que nada tem a ver com as atividades econômicas que se quis de fato incentivar, quais sejam: aquelas consideradas prioritárias para o desenvolvimento regional da Amazônia.”
A situação é tão cheia de irregularidades que os concentrados vendidos por boa parte dos fornecedores nem concentrados são. Assim, o setor tem se aproveitado irregularmente de créditos sobre insumos que não podem ser denominados concentrados. A Receita apurou que alguns fornecedores de concentrados para preparar néctar, muitas vezes, nem fruta contêm, apenas aromas e outros aditivos. Outros concentrados são na verdade kits de insumos vendidos separadamente. Alguns insumos nem são produzidos na ZFM, apenas passam por ela. Ou seja, esses fornecedores não são produtores de concentrados. De fato, são produtores de créditos
Ao contrário do que o setor de bebidas adoçadas e alguns defensores da ZFM denotam como verdade em audiências públicas e em entrevistas à imprensa, a nota é categórica em afirmar que este setor traz benefícios sociais reduzidos à região amazônica. Em 2016, enquanto os fabricantes de concentrados faturaram 8,7 bilhões de reais, a compra dos insumos da região foi de apenas 215 milhões, e o número de empregos não chegava nem a mil.
O Decreto 9.394, de junho de 2018, previa corrigir os incentivos dados a essas empresas, alterando a alíquota do IPI de 20% para 4%. No entanto, logo em seguida, com o Decreto 9.514, de setembro de 2018, as empresas puderam esticar por mais tempo suas regalias, uma vez que propõe uma redução escalonada dos subsídios, decaindo para 12% no primeiro semestre deste ano, e 8% no segundo, chegando a 4% somente em 2020. O ideal seria termos desde já essa redução, dado que diminuiria a renúncia do setor em 1,5 bilhões de reais, sem gerar perda de empregos e com o ganho para as contas públicas, segundo a nota da Receita.
A esperança é que o governo atual corte as regalias dessas empresas, que produzem alimentos não saudáveis que contribuem para obesidade e diabetes e que, na verdade, deveriam pagar mais pelas externalidades negativas que provocam. A nossa Constituição (Art. 153) determina que produtos industrializados sejam mais ou menos tributados pelo IPI de acordo com a sua essencialidade. Cigarros já tem alta carga de IPI, mas o setor de bebidas ainda está na contramão. Posicionamento recente do Ministro da Economia, Paulo Guedes, dado à Folha de São Paulo na semana passada, sinaliza que estamos em fase favorável para corrigir de uma vez por todas essas distorções “Todo mundo vem pedir subsídios. Dinheiro para isso, dinheiro para aquilo. Eu falo: o que vocês podem fazer pelo Brasil? Quebraram o Brasil”. Em tempos de crise, se há um corte que precisa ser feito de uma vez por todas, é nessas empresas que muito lucram e, além de pouco contribuírem com a geração de receita e empregos para o país, contribuem muito para deixar a população cada vez mais doente.
Saiba mais em reportagem do Joio e o Trigo:
https://outraspalavras.net/ojoioeotrigo/2019/01/publicidade-de-coca-cola-e-ambev-e-paga-com-dinheiro-publico-diz-receita/