É evidente que num país que passou por uma longa ditadura, como é o caso do Brasil, parte da sociedade seja avessa à ideia do Estado controlar os comportamentos individuais, assim como à menor possibilidade de controle de conteúdo da mídia.
Tendo essas duas premissas em mente convido o leitor a uma reflexão sobre o atual contexto sócio-economico-político do Brasil do século XXI, que muitas vezes evoca o sentimento de que o poder do Estado está tentando cercear nossas liberdades individuais e a nossa liberdade de expressão. Essa tese, bastante simplista, ignora uma série de atores e de relações de poder que são muito mais poderosas em ditar comportamentos, o que vestimos, o que comemos, como nos locomovemos, onde vivemos, do que o temido poder do Estado.
Acho correto e fundamental que as pessoas tenham apreço ao conceito de liberdade individual. Mas o que de fato isso significa? Desconheço qualquer fundamento filosófico que não pressuponha limites para o próprio conceito de liberdade. Numa vida em sociedade, onde se situam as liberdades individuais na convivência com o coletivo? Como as relações de poder determinam a liberdade de alguns em detrimento do confinamento de outros?
Sem querer defender ou fazer apologia a qualquer governo, instância de poder ou partido político, que carecem de credibilidade e que colecionam eventos de corrupção, essa e várias outras questões são importantes para refletirmos sobre quais as configurações de poder que de fato são uma ameaça as nossas liberdades individuais. A nossa única esperança de um nível mínimo de liberdade pressupõe informação baseada em evidências e regulação. Os críticos da ciência que me perdoem, mas os parâmetros que “escolhemos” para definir nossas verdades é a ciência, portanto é a partir das evidências que temos que pautar o nosso acesso a informação. Em outras palavras, não existe liberdade sem limite.
Em função da pertinência do debate diante de uma série de discussões que acontecem no Brasil hoje, escolho o exemplo da mal-fadada (e com muita razão) indústria do tabaco. Não fosse a regulação dessa indústria, hoje nossos filhos adolescentes seriam assediados por promotores de venda dos grandes fabricantes de cigarros distribuindo amostras grátis de cigarros com sabor de baunilha, cereja, morango em embalagens psicodélicas no show do Justin Bieber. Ou melhor ainda, o show do Justin Bieber seria patrocinado pela Souza Cruz ou pela Phillip Morris.
Apesar dos avanços na regulação dessa indústria, será que já conseguimos evitar que nossos jovens deixem de ser aliciados pela sede de lucros dessa indústria? Aqui faço um parêntese. Para aqueles que alegam que o maior problema do Brasil hoje são as drogas como o crack e o oxi, é importante ressaltar que a grande maioria de usuários de drogas Ilícitas começou usando drogas lícitas como cigarro e álcool. Pesquisa finlandesa, por exemplo, mostrou que adolescentes que começam a fumar por volta dos 12 anos de idade têm 26 vezes mais chances de experimentar e desenvolver o hábito de consumir maconha ou outra droga ilícita aos 17 anos.
A resposta à pergunta acima é NÃO, ainda temos um longo caminho a percorrer e o que temos testemunhado em termos de lobby e pressão é assustador e, infelizmente, não lemos nada nos veículos de grande circulação que identifique o que está por trás das críticas a posições do governo em relação a esse tema. O fato é que hoje, 6 de outubro, seriam realizadas duas audiências públicas sobre resoluções propostas pela ANVISA que tratam da exposição das embalagens de cigarro nos pontos de venda e na adição de aditivos como menta, baunilha, chocolate, morango nos cigarros que os tornam mais atrativos justamente entre jovens e adolescentes para iniciação no tabagismo.
As propostas da ANVISA contam com respaldo de um tratado internacional ratificado pelo Brasil em 2006 e com apoio total das entidades médicas, de defesa do consumidor, da infância e juventude, entre outras. No entanto, a indústria conseguiu emplacar mais uma manobra protelatória e ontem no final do dia surgiu uma decisão judicial do desembargador Vilson Darós do RS, solicitada pelo Sinditabaco, que suspendeu a realização das audiências. Não é a primeira e nem será a última vez que, na falta de argumentos defensáveis, a indústria apela. A decisão desse juiz foi lamentável, pois suspender a realização de audiência pública é uma das atitudes mais anti-democráticas que já testemunhei. Isso comprova que a indústria não quer ser ouvida e sim impedir avanços na política de controle do tabagismo.
Outra estratégia utilizada para desvirtuar o debate sobre os objetivos das medidas propostas é a divulgação de um relatório encomendado por aliados da indústria do tabaco para FGV que dissemina argumentos de perdas econômicas sem nenhum embasamento. Entidades nacionais e internacionais de saúde, OPAS – Organização Pan Americana de Saúde, Universidade de Johns Hopkins, Campaign for tobacco free kids e ACT – Aliança de Controle do Tabagismo, analisaram o relatório e concluem que não há nenhuma evidência científica que respalde as declarações feitas pelo relatório comprado da FGV.
Como coordenadora de uma rede de entidades e profissionais das mais diversas áreas de atuação que acompanha esse tema de perto, confesso que estamos assustados com as garras do lobby da indústria do tabaco. Que apesar de propagar aos quatro ventos que é transparente, não dá a cara a tapa e usa grupos de frente para manter seus lucros e pior do que isso, usa o elo mais fraco da cadeia produtiva, os agricultores, como massa de manobra. Precisamos abrir os olhos, não tenho medo do Estado, mas tenho medo dos representantes do Estado que se dobram a interesses corporativos privados em detrimento do bem público.
Paula Johns.