Em suas tentativas de vender cigarros eletrônicos no Brasil, a indústria do tabaco argumenta, entre outras coisas, que a liberação permitiria um maior controle sobre a venda para menores de idade, o conteúdo dos produtos e o mercado ilícito. No entanto, como veremos aqui, não foi isso o que aconteceu nos Estados Unidos, que começou a permitir a venda de cigarros eletrônicos em 2016.
Qualidade e conteúdo dos produtos
Em setembro, a equipe da ACT preparou uma nota técnica mostrando que a liberação dos cigarros eletrônicos não os tornaria produtos de menor risco ou de maior qualidade. Uma pesquisa da Johns Hopkins, universidade estadunidense, de fato, “testou modelos de quatro marcas diferentes (MiSalt, Vuse, Juul e Blu) e foram encontradas milhares de substâncias desconhecidas no líquido, e o número de compostos crescia significativamente no aerossol (…) A equipe encontrou quase 2.000 produtos químicos, a grande maioria não identificada.”
Ou seja, o controle sanitário não foi suficiente, pois mesmo marcas cuja venda é permitida também contêm majoritariamente compostos desconhecidos. Além disso, entre as substâncias que podem ser identificadas encontram-se várias extremamente tóxicas, incluindo nicotina, glicerol, propilenoglicol, formaldeído, acetaldeído, acroleína e acetona. A quantidade de nicotina, inclusive, pode ser muito superior em alguns produtos – segundo a organização estadunidense Campaign for Tobacco-Free Kids, alguns cigarros eletrônicos contêm mais nicotina do que 200 cigarros convencionais.
Mercado ilícito
A liberação dos cigarros eletrônicos nos Estados Unidos tampouco foi eficiente para frear o contrabando, muito pelo contrário: com o aumento vertiginoso no consumo desses produtos que ocorreu depois que eles entraram no mercado, aumentou a procura por eles, inclusive por meios ilícitos.
Ainda segundo a Tobacco-Free Kids, mais de seis mil produtos ilegais inundam o mercado no país norte-americano. São poucos, na verdade, os produtos que de fato têm autorização de venda pela FDA, a agência sanitária dos EUA, e quase nenhum deles contém sabores (ou tem sabor de tabaco). O que se vê, no entanto, é que 87,6% dos usuários usam produtos saborizados, segundo o CDC, agência de saúde do país. Segundo a organização Truth Initiative, de fato, 86% das vendas no país são de produtos ilegais.
Venda para menores de idade e consumo por jovens
Aqui no Brasil, a nota técnica da ACT destaca um estudo do INCA que mostrou que “nove em cada dez adolescentes fumantes entre 13 a 17 anos que tentaram comprar [cigarros convencionais] nos locais autorizados tiveram sucesso”. Nos EUA, algo similar acontece com os cigarros eletrônicos, tanto que mais de 1,6 milhão de estudantes do ensino médio e fundamental são usuários desses produtos – mesmo a venda sendo proibida para menores de idade.
O fato é que o design moderno e os sabores apelativos tornaram os cigarros eletrônicos especialmente atrativos para adolescentes e jovens adultos, e liberar a venda não iria suprimir essa demanda, pelo contrário.
Cenário atual
O CDC afirma que nenhum desses produtos é seguro. Mesmo assim, atualmente, os cigarros eletrônicos já são os produtos de tabaco mais consumidos pelos jovens nos Estados Unidos, e mais da metade deles usa versões descartáveis, o que é também um grande problema ambiental.
Entre os usuários adultos no país norte-americano também se verificam várias questões sérias, incluindo o fato de que mais de 30% dos usuários nunca haviam fumado cigarros convencionais. Se considerarmos apenas as pessoas entre 18 e 24 anos, esse número salta para 61%.
A agência estadunidense também destaca que grupos sociais específicos apresentam uma maior incidência de uso de cigarros eletrônicos, incluindo pessoas com menor nível educacional e/ou de renda, pessoas da comunidade LGBTQIAP+ e adultos que relataram sofrer com questões psicológicas graves. Ainda segundo o CDC, alguns desses grupos encontram mais barreiras para acessar cuidados de saúde e tratamento para dependência.
Como é possível notar, portanto, o uso de cigarros eletrônicos nos Estados Unidos representa uma séria crise de saúde pública, e a experiência do país mostra que liberar a venda desses produtos não traz nenhuma vantagem – exceto, é claro, para as empresas que os fabricam. Do ponto de vista da sociedade, no entanto, os cigarros eletrônicos foram responsáveis por um aumento no consumo de produtos de tabaco por jovens e, mesmo com alguns produtos legalizados, isso não foi eficaz para deixar o produto mais seguro nem para coibir a venda por meios ilícitos.