Cinismo Fiscal

Fonte: Jornal O GLOBO
Autor: MARCOS F. MORAES
13/06/2009

No ano passado a Organização Mundial de Saúde (OMS) contabilizou em um relatório 100 milhões de mortes no mundo causadas por produtos de tabaco só no século XX. Quantas guerras atingiram essa cifra?

Trata-se de um verdadeiro genocídio, disfarçado no cinismo de um negócio cuja principal estratégia é ampliar o consumo de um produto que mata pelo menos metade de seus consumidores.

Na década de 90, milhões de documentos internos de companhias transnacionais de tabaco desvendaram ao público suas mais diferentes estratégias fraudulentas e desleais para manter o crescimento global do tabagismo, uma dependência química classificada no código internacional de doenças da OMS. Isso levou a OMS nesse mesmo relatório a comparar a indústria do fumo a um vetor de doenças e mortes.

Nessa mesma década o Inca, através de pesquisa mandada fazer no Canadá, mostrou que alguns fabricantes adicionavam amônia à mistura na preparação do cigarro para aumentar a liberação de nicotina livre e aumentar a dependência a essa droga mortal.

Um dos lados mais perversos desse negócio é que o mesmo gera uma epidemia de doença pediátrica, pois na maioria dos casos a dependência e o consumo regular dos produtos se iniciam na adolescência.

Como cidadão brasileiro e médico fiquei extremamente indignado quando li a reportagem da “Folha de S.Paulo” (8/6) informando que o governo do Rio Grande do Sul está dando um incentivo de 150 milhões de reais para a Souza Cruz, subsidiária da British American Tobacco, uma das maiores companhias transnacionais de fumo do mundo.

Como pode um governo dar incentivo econômico a um negócio cuja sobrevivência depende de sua capacidade de enganar milhões de adolescentes, prometendo através de suas estratégias de marketing levá-los “ao sucesso”, “à liberdade”, “ao pódio”, quando na verdade os leva à dependência, e na vida adulta à incapacitação e aos leitos do já sobrecarregado sistema de saúde?

Financiar essa indústria significa ser conivente com isso. E não me venham com o discurso hipócrita de que se trata de uma empresa legal, que paga impostos e gera empregos.

Nada justifica usar o dinheiro do contribuinte para financiar um negócio que não traz nenhum benefício para seus consumidores mas, ao contrário, deixa para toda a sociedade uma enorme conta de dor, sofrimento e de desperdício de dinheiro público no tratamento de doenças relacionadas ao tabaco, e aposentadorias precoces, entre outros custos tangíveis e intangíveis.

São 200 mil mortes por ano no Brasil, e 5 milhões no mundo! Financiar essa indústria significa também alimentar o seu poder de financiar lobistas e campanhas de candidatos a cargos legislativos para que atuem em função dos seus nada nobres objetivos.

Essa é uma das mais importantes estratégias descritas em documentos internos dessas companhias para minar ou reverter ações de saúde pública voltadas para reduzir o tabagismo.

Hoje assistimos o intenso lobby contra a aprovação de projetos de lei que tramitam no Congresso Nacional que visam a proteger todos dos graves riscos do tabagismo passivo, em um momento em que a ciência nos mostra que o tabagismo passivo mata cerca de 2.300 não fumantes só no Brasil.

Quando elegemos um governante, o fazemos na expectativa de que ofereça à sociedade um governo ético e justo. Isso inclui fazer um bom uso do dinheiro do contribuinte.

Nessa perspectiva tenho certeza que nenhum de nós quer ver seus impostos transformados em incentivos para gerar doenças e mortes. Esse subsídio é na melhor das hipóteses mais um crime de lesa-pátria.

MARCOS F. MORAES é presidente da Academia Nacional de Medicina.

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