Carta ao meu irmão

Compartilho o depoimento da Anna Monteiro, Diretora de Comunicação da ACT, escrito no dia 23 de abril, em homenagem ao seu irmão. Um retrato de amor, de lembranças eternas, e de uma profunda saudade.
João teve enfisema pulmonar causado pelo tabagismo.

“Foi numa noite de 23 de abril que chegou a notícia. Foi daquelas notícias que chegam numa hora que você sabe que não é boa coisa, tarde da noite. João não aguentou, descansou.

João era meu irmão. Meu Dindo. Dezoito anos mais velho que eu, que nasci temporão.

Era meu Papai Noel nos Natais, quando eu, muito criança, nem desconfiava da inventividade dos adultos. Ele me ligava dias antes, me perguntando o que eu queria de presente, e eu ouvia os sininhos da fábrica, as engrenagens das máquinas de fazer brinquedos, as renas a relinchar.

E quando chegava a noite de 24 de dezembro, a família toda reunida, pai, mãe, irmã, irmão, a sobrinha já nascida, o cunhado, a cunhada, eu acreditava naquele bom velhinho de barbas brancas como acreditava na existência do pai do céu. Não importava que a barba fosse um punhado de algodão colado de mau jeito, também ajeitado nas sobrancelhas, que a barriga fosse uma almofada. Eu lhe oferecia rabanadas, come Papai Noel, come. E depois ele ia embora, ho, ho, ho, tocando um sininho, e eu falava: Ah, o Dindo não viu!

Adorava o bonequinho transparente que ele tinha na escrivaninha, com os ossos, músculos, órgãos que se desmontavam, e com o qual eu adorava brincar. Acho que se chamava Gabriel, o pobre boneco transparente que vivia com os bofes para fora porque eu não sabia recoloca-los. E aí, espalhados na tampa de madeira escura, jaziam um coraçãozinho, um baçozinho, um fígadozinho que não se encaixavam mais naquele abdome. Eu vivia com seu estetoscópio pendurado no meu pescoço e auscultava a família inteira, tum tum tum tum, tudo certo, diga trinta e três, tudo ok, pode ir. Próximo.

Outra coisa boa era assistir a Pantera Cor de Rosa recostada na perna dele. Eu chegada do primário, ele da faculdade de medicina. A TV em preto e branco e a pantera cinzenta a aprontar coisas que nos faziam gargalhar. Depois vinha o jantar, a sopa, o pão.

Banco Imobiliário, Detetive, pega varetas, ludo, dama, foi ele quem me ensinou a jogatina da infância. Me equilibrar sobre um par de patins? Ele. Na bicicleta com rodinhas? Ele, e trazida pelo Papai Noel ainda por cima. Depois, quando eu já estava com bastante equilíbrio, levantou uma rodinha, segui meio torto, a outra rodinha ali ao lado, dando apoio, e o Dindo dizendo: vai, sem medo, não vai cair. E fui. Completei a volta da praça na bicicleta vermelha.

Um dia, King Kong veio ao Rio, aquele mesmo que sequestrou Jessica Lange e a levou para o alto do Empire State. Ele, o Dindo, não teve dúvidas: me levou para conhecê-lo, num circo montado na Praça Onze. Aterrorizada com aquele macaco enorme, que ainda por cima se desprendia das correntes, quase chorei. Coração na boca. Mãos suadas. Depois ganhei milk shake do Bob’s.

Jessica Lange de novo, tempos depois, no cinema Alvorada, em Teresópolis. O mofo impregnado nas poltronas vermelhas encardidas. Minha cunhada tapando meus olhos para eu não ver o sexo selvagem com Jack Nicholson, que atira todas as coisas de cima da mesa da cozinha, canecas, pratos, bule, e joga Jessica ali, arregaça-lhe a saia ou o vestido, o marido dela no posto de gasolina. O Destino Bate à Sua Porta. Eu, uns 13 anos, os olhos enormes colados na tela, me desvencilhando de suas mãos, embasbacada com aquilo tudo. Quer dizer que é assim…

Fui dama de honra de seu casamento, ainda pequena. Entrei compenetrada na igreja, assustada com os olhares, enfiada num vestido azul terrível de tão forte, parecia um céu sobre o tapete vermelho, babadinhos no pescoço. Uma cestinha de flores dependurada no braço, as alianças numa caixinha.

Além de Zico, ídolo máximo do meu irmão, que me levava à Granja Comary para vê-lo treinar, outro ídolo era Chico Buarque, e o Dindo me gravava fitas cassete e me dava, fitas que até pouco tempo atrás eu tinha, mas se oxidaram, arrebentaram, pena. A vida arrebenta tudo. Agora eu era herói, e o meu cavalo só falava inglês, a noiva do caubói era você além das outras três. Não consigo ouvir sem me lembrar dele sentado na sala, o sinteco fosco, a vitrola ainda de madeira que tinha um cheiro todo especial, o disco da novela Dancing Day’s. Mato Grosso do Sul. No verão que nosso pai morreu. Mangas gigantescas, temporal à tardinha, jacarés no fosso da pracinha.

Na década de 90 ele adoeceu. Seu pulmão parecia plástico bolha. Um enfisema miserável de agressivo. Sim, ele sempre fumou. Muito, desde os 13, 14 anos.

Terminou a vida numa cama de hospital, dependente de um balão de oxigênio, pequeno, frágil, com um furo no pescoço. Logo ele, que tinha um metro e oitenta tanto, o irmão gigante que me botava em sua cacunda e saía por aí comigo, para ver o desfile de 7 de setembro e comer algodão doce. Bandeirinhas verdes e amarelas na mão.

Hoje faz 17 anos que recebi aquela ligação, à noite, naquele horário tardio, presságio de más notícias. Fica em paz, meu irmão, meu Dindo do coração.”

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