Sistemas alimentares e direitos humanos

Na semana passada, foi publicado um texto no blog BMJ Opinion sobre como tratados de direitos humanos já existentes poderiam ser clarificados para passarem a compreender também o direito à alimentação e à saúde por meio da criação de ambientes alimentares mais saudáveis e da transformação dos sistemas alimentares.

O texto é de autoria de Kent Buse, David Patterson, Roger Magnusson e Brigit Toebes e foi assinado por vários líderes da área da saúde pública em todo mundo, incluindo Paula Johns, Diretora Geral da ACT Promoção da Saúde.

Confira abaixo a tradução integral do texto (o original pode ser lido aqui):

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No início deste ano, uma Comissão do Lancet sobre a Obesidade afirmou que era preciso fazer “uma revisão radical dos modelos de negócios, dos sistemas alimentares, da participação da sociedade civil e da governança nacional e internacional” para enfrentarmos as crises interligadas de obesidade, nutrição inadequada e mudanças climáticas. Nós concordamos, e acreditamos também que mecanismos, instituições e legislações internacionais da área dos direitos humanos representam oportunidades importantes, mas pouco utilizadas, para a definição de diretrizes, ações de advocacy e prestação de contas. 

Embora a exploração de novos acordos internacionais de saúde, incluindo para a promoção da alimentação saudável e a regulação de produtos nocivos, como o álcool, seja bem-vinda, já existem oportunidades para transformar os sistemas alimentares e criar ambientes alimentares mais saudáveis. Isso poderia ser feito por meio da clarificação de compromissos internacionais que já estão em vigor, para progressivamente compreenderem o direito à alimentação e saúde. Diretrizes baseadas em evidências e elaboradas por autoridades no assunto já estão disponíveis para enfrentarmos esses desafios com medidas efetivas. Nesta Década de Ação para a Nutrição (2016-2025), por exemplo, um Painel de Especialistas da ONU recomendou ações governamentais para combater todas as formas de nutrição inadequada. Essas recomendações, no entanto, sofrem resistências por parte da indústria, e os países ainda não atingiram níveis adequados de implementação.

A resposta global à AIDS mostrou o poder de ações pautadas com base nos direitos humanos. As diretrizes internacionais da ONU sobre HIV/AIDS e Direitos Humanos tiveram grande influência no desenvolvimento de um consenso global sobre a necessidade de ações baseadas em evidências e direitos humanos para o enfrentamento da epidemia de HIV. Elas incluíam as resoluções da Assembleia Geral da ONU e do seu Conselho de Direitos Humanos, e seu impacto ainda pode ser visto em iniciativas como os relatórios da Comissão Global sobre HIV e as legislações e sistemas de saúde que foram fortalecidos como um todo. Modelos baseados em direitos humanos promovem ações. No caso do HIV, eles contribuíram para que os remédios ficassem mais acessíveis, mais pessoas fossem tratadas, houvesse menos estigmatização nos serviços de saúde, grupos marginalizados fossem empoderados e para a institucionalização de preceitos como “não deixar ninguém para trás.” É certo que existem diferenças entre a comunidade que trabalha com sistemas alimentares e obesidade e o movimento de luta contra a AIDS, que é mais integrado. Reconhecemos também o impacto dos direitos humanos nas respostas globais a outras questões, como o controle do tabaco e a saúde reprodutiva.

Nós celebramos a liderança da Alta Comissária para os Direitos Humanos, Michelle Bachelet, e do Diretor Geral da Organização Mundial da Saúde, Tedros Ghebreyesus, por seu compromisso com uma abordagem baseada em direitos humanos para a saúde global, e gostaríamos de solicitar que deem início um processo inclusivo para desenvolver diretrizes sobre direitos humanos, alimentação saudável e sistemas alimentares sustentáveis. Isso poderia incluir a criação de um comitê de especialistas em direitos humanos, saúde pública, sistemas alimentares e nutrição, governantes, agências da ONU como a FAO e o PNUD e organizações da sociedade civil, assim como foi feito para o desenvolvimento das diretrizes para o HIV, atualmente sob tutela do Escritório do Alto Comissariado para Direitos Humanos e do Programa Conjunto sobre HIV/AIDS da ONU.

As diretrizes propostas poderiam ser apresentadas no Conselho de Direitos Humanos da Assembleia Mundial da Saúde e trazer informações sobre o desenvolvimento de recomendações e comentários gerais por órgãos de tratados de direitos humanos relevantes e sobre ações governamentais por meio da Revisão Periódica Universal.

Estamos nos aproximando da metade da Década de Ação para a Nutrição, mas o status quo é insustentável e é preciso tomar ações mais corajosas. Sozinhas, as forças do mercado não foram capazes de garantir sistemas alimentares sustentáveis e a alimentação saudável em geral. Diretrizes relacionadas aos direitos humanos podem promover ações multisetoriais, reforçar a prestação de contas dos governos e do setor privado e fortalecer o engajamento das pessoas para a obtenção dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da Agenda 2030. Nós identificamos algumas áreas importantes para as diretrizes, bem como etapas-chave para o seu desenvolvimento e impactos potenciais. 180 especialistas de 38 países de todas as regiões do mundo assinam este texto.

1 comentário em “Sistemas alimentares e direitos humanos”

  1. “Sozinhas, as forças do mercado não foram capazes de garantir sistemas alimentares sustentáveis e a alimentação saudável em geral”. Em outras palavras, o capitalismo falhou em garantir o mínimo necessário à sobrevivência digna das pessoas no mundo, e a crença de que o mercado se autorregula e promove o desenvolvimento das nações não se confirma na prática. Sem uma política de subsídio à agricultura familiar para a produção de alimentos sem agrotóxicos, sem políticas públicas de apoio à produção e ao consumo de comida de verdade, boa parte das pessoas com diabetes no Brasil não consegue fazer uma dieta saudável porque não consegue comprar comida saudável. Aliás, esse seria um ponto importante para se conhecer antes da discussão despolitizada de adesão ao tratamento: quantas pessoas com diabetes tem de fato grana pra comprar os alimentos integrantes da sua dieta alimentar? Tudo isso engloba a concepção dos alimentos como direito humano, como condição fundamental à sobrevivência das pessoas. Parabéns à ACT e aos demais envolvidos por suscitar essa importante discussão!

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